sexta-feira, 24 de julho de 2015

O INOCENTE - EPÍLOGO
...A festa de despedida - O líder da tribo entendeu as ponderações do italiano, aceitou-as e disse: se esta é a sua vontade, assim será feito. Mas de toda forma, como não posso voltar a palavra atrás, a donzela que você salvou é doravante sua propriedade. Poderá vendê-la a outra tribo, dispor dela como bem quiser. O italiano colocou as mãos na cabeça e pensou consigo mesmo: e agora, o que vou fazer com esta moça? Estou encrencado. Isto é sarna para coçar. Teve então uma ideia: como o líder dos beduínos não poderia receber a donzela de volta, e ele, recusar o presente, propôs trocar a donzela por uma camela arriada. Todos aplaudiram a proposta. A melhor camela do acampamento foi ricamente ornada e o italiano partiu, não sem antes ouvir uma sentença da donzela que havia preterido: seu próximo filho nascerá com uma boca enorme, igual à desta camela que o senhor trocou por mim. Olivié ouviu a história do italiano encantado, levantou-se da mesa e convidou-o a ir à sua casa no dia seguinte. Tinha uma proposta a fazer-lhe.  
A campainha tocou na casa do pai de Lina às 10h da manhã de domingo. O italiano atendera o convite. Feitas as saudações, dirigiram-se para a biblioteca, sentaram-se à mesa, e Olivié disse ao visitante: por favor, escute-me. Vou contar-lhe o que me ocorreu nesta última semana, exatamente na minha lua de mel. Narrou-lhe então a história do pedreiro em Mariana, da carta amarelada e da indicação do tesouro. Seu interlocutor perguntou-lhe: você está brincando comigo? Só porque lhe contei ontem a história da vidente na minha vila na Itália? Olivié levantou-se, foi até a estante, pegou sua maleta, abriu-a, retirou a carta amarelada, colocou-a sobre a mesa e lhe disse: leia você mesmo. Espanto total: os dois ficaram extasiados pela enorme coincidência de o destino ter colocado um frente ao outro. Ali nasceu uma longa e fraternal sociedade.
A partida - Na segunda-feira, Olivié e Lina tomaram a composição rumo a Diamantina. Suas malas foram acomodadas no compartimento próprio seguido de um vagão especialmente fretado com todo o mobiliário do casal. Uma viagem cansativa. Naqueles tempos, não existia linha regular de ônibus. Apenas o trem de ferro subia a Serra da Tocaia numa lentidão contínua. Gastava-se um dia de viagem de Belo Horizonte a Diamantina. O passageiro chegava ao destino todo empoeirado de fuligem de carvão. A locomotiva era a famosa “Maria Fumaça”. Movida à lenha, ia expelindo grossos fumos pelo caminho.
As viagens de trem de ferro eram uma verdadeira maratona. Além de morosa, a composição parava em vilas, fazendas, povoados, no meio do nada, para abastecimento de água e de lenha. Uma espécie de garçom passava de vagão em vagão oferecendo em uma cesta de vime biscoitos de goma, quebrador (de polvilho), guaraná e chocolates. Detalhe: havia três categorias de vagões de passageiros: primeira classe, com poltronas acolchoadas, reclináveis, macias, cortinas de renda nas janelas; segunda classe, com bancos de madeira revestidos de espuma e couro, não reclináveis nem tão macios. Obviamente, a terceira classe era um desastre verdadeiro: a passagem custava menos da metade do preço, bancos de madeira, sem forro, janelas empenadas não abriam, não tinham cortina para tapar o sol, e o garçom nem se dava o trabalho de visitar o vagão.
À noite caindo, o casal jantou no carro restaurante. Finas iguarias, um bom vinho francês; Olivié passou dos limites, tomou duas garrafas, recostou na poltrona e cochilou. Às 22h, um apito intermitente anunciava a chegada do trem de ferro a Diamantina. O gerente da mina de diamantes que os esperava levou-os ao hotel para um merecido descanso.
A busca - Uma semana depois da chegada de Olivié a Diamantina, desembarcou na estação da EFCB o italiano. Trazia em sua bagagem todas as suas economias em dinheiro vivo e uma dezena de máquinas de escrever Olivetti. Seria representante na cidade desta famosa marca. Era uma forma de despistar a real finalidade da sua estada na região. Alugou um cômodo ao lado da Igreja Matriz, montou sua pequena loja. Muito alegre e comunicativo, logo angariou muitas amizades. Alugou uma casa bem perto da loja.  Todas as noites ia visitar Olivié. Confabulavam horas a fio, planejavam, arquitetavam como dar inicio à busca do tesouro sem despertar a curiosidade dos habitantes da cidade. Para Olivié era mais fácil, pois a mina de diamantes ficava próxima ao local estipulado na carta. Após muitos estudos, acertaram a compra do terreno em que estaria enterrado o tal tesouro, como constava na carta.
Durante longos tempos, munidos de pás, enxadas e picaretas, os dois companheiros iam, nos fins de semana, à fazenda que compraram, furavam buracos, faziam cálculos, mapas e nada de acharem o tesouro. Passados mais de 30 anos, com a morte dos pais de Lina, os cunhados decidiram vender a mina de diamantes. Além do mais, Lina sentia uma saudade enorme do Rio de Janeiro. Gostava de Diamantina, mas a cidade era pequena, não havia teatro, o conforto de um grande centro, e estava longe da sua família. Vendida a mina, Olivié chamou seu amigo para um último encontro e lhe disse que estava de partida para o Rio e que daquele dia em diante, se porventura encontrasse o tesouro, seria somente dele, do italiano. Que se casara com uma moça da cidade e tivera dois filhos. E o mais interessante: seu primogênito ficou bem próximo da praga da beduína, com sua boca enorme, bem parecida com a da camela. O italiano tinha muitas virtudes, era trabalhador, bom pai de família, amigo de todos, educadíssimo, boa prosa, contava causos e mais causos. Era também chegado a rabos de saia e isto lhe causou certos aborrecimentos, mas nada que afetasse o bom humor de um eterno sonhador.
Vinte anos mais tarde, a contar da data do retorno ao Rio de Janeiro do seu sócio Olivié, perfazendo aproximadamente 50 anos de busca, o italiano Giovane, “o Belo”, como carinhosamente era conhecido na cidade, faleceu de câncer. Alguns anos antes da sua longa viagem para outra dimensão, mostrara em confidência a este contador de causos a carta amarelada e já desgastada pelo tempo, provavelmente de tanto ser manipulada, aberta e fechada. Este legado é mantido por seu filho num cofre forte. Sugeri-lhe que tornasse essa carta pública, para que pesquisadores e historiadores refizessem e recontassem a história que, entre outras finalidades, seria a remissão moral do contratador Felisberto Caldeira Brant. É que na carta há uma clara confissão da autoria do roubo ao cofre da intendência, praticado pelo tesoureiro, e não pelo contratador dos diamantes. A sugestão não vingou. Mas creio que se alguma autoridade requisitar essa carta oficialmente terá sucesso, visto que se trata de um bem público pertencente à União, documento que é da Historia do Brasil ao tempo do Império Português. Certamente a lei tem amparo jurídico para tal ato. Que em nada atrapalharia o sonho do filho do italiano de encontrar um dia o fabuloso tesouro que seu pai morreu sem achar.  

O Meteco
Pseudônimo de Luciano Becheleni Guimarães

Voz de Diamantina - Edição 722 - 13/06/2015





2 comentários:

  1. Bom a história. Gostei! O Felisberto Caldeira Brant, coitado, foi cumprir pena de degredo por um crime que não cometeu. Eu tenho um livro escrito por ele, sobre Diamantina. Eu morava em Corinto, quando saiu no Jornal, o Estado de Minas, que uma casa ai em Diamantina, teve uma de suas paredes caida, após um forte chuva, e no meio da antiga parede feita de ''pau a pique foi encontrado um pode de barro com um tesouro dentro, entre diamantes e ouro).

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