O INOCENTE - EPÍLOGO
...A festa de despedida - O líder da tribo entendeu as ponderações do italiano,
aceitou-as e disse: se esta é a sua vontade, assim será feito. Mas de toda
forma, como não posso voltar a palavra atrás, a donzela que você salvou é
doravante sua propriedade. Poderá vendê-la a outra tribo, dispor dela como bem
quiser. O italiano colocou as mãos na cabeça e pensou consigo mesmo: e agora, o
que vou fazer com esta moça? Estou encrencado. Isto é sarna para coçar. Teve então
uma ideia: como o líder dos beduínos não poderia receber a donzela de volta, e
ele, recusar o presente, propôs trocar a donzela por uma camela arriada. Todos
aplaudiram a proposta. A melhor camela do acampamento foi ricamente ornada e o italiano
partiu, não sem antes ouvir uma sentença da donzela que havia preterido: seu
próximo filho nascerá com uma boca enorme, igual à desta camela que o senhor
trocou por mim. Olivié ouviu a história do italiano encantado, levantou-se da
mesa e convidou-o a ir à sua casa no dia seguinte. Tinha uma proposta a fazer-lhe.
A campainha tocou na casa do pai de Lina às 10h da
manhã de domingo. O italiano atendera o convite. Feitas as saudações,
dirigiram-se para a biblioteca, sentaram-se à mesa, e Olivié disse ao visitante:
por favor, escute-me. Vou contar-lhe o que me ocorreu nesta última semana,
exatamente na minha lua de mel. Narrou-lhe então a história do pedreiro em
Mariana, da carta amarelada e da indicação do tesouro. Seu interlocutor perguntou-lhe:
você está brincando comigo? Só porque lhe contei ontem a história da vidente na
minha vila na Itália? Olivié levantou-se, foi até a estante, pegou sua maleta,
abriu-a, retirou a carta amarelada, colocou-a sobre a mesa e lhe disse: leia
você mesmo. Espanto total: os dois ficaram extasiados pela enorme coincidência
de o destino ter colocado um frente ao outro. Ali nasceu uma longa e fraternal
sociedade.
A partida - Na segunda-feira, Olivié e Lina tomaram a
composição rumo a Diamantina. Suas malas foram acomodadas no compartimento
próprio seguido de um vagão especialmente fretado com todo o mobiliário do
casal. Uma viagem cansativa. Naqueles tempos, não existia linha regular de
ônibus. Apenas o trem de ferro subia a Serra da Tocaia numa lentidão contínua.
Gastava-se um dia de viagem de Belo Horizonte a Diamantina. O passageiro chegava
ao destino todo empoeirado de fuligem de carvão. A locomotiva era a famosa
“Maria Fumaça”. Movida à lenha, ia expelindo grossos fumos pelo caminho.
As viagens de trem de ferro eram uma verdadeira maratona. Além de morosa,
a composição parava em vilas, fazendas, povoados, no meio do nada, para
abastecimento de água e de lenha. Uma espécie de garçom passava de vagão em
vagão oferecendo em uma cesta de vime biscoitos de goma, quebrador (de polvilho),
guaraná e chocolates. Detalhe: havia três categorias de vagões de passageiros:
primeira classe, com poltronas acolchoadas, reclináveis, macias, cortinas de
renda nas janelas; segunda classe, com bancos de madeira revestidos de espuma e
couro, não reclináveis nem tão macios. Obviamente, a terceira classe era um
desastre verdadeiro: a passagem custava menos da metade do preço, bancos de
madeira, sem forro, janelas empenadas não abriam, não tinham cortina para tapar
o sol, e o garçom nem se dava o trabalho de visitar o vagão.
À noite caindo, o casal jantou no carro restaurante. Finas iguarias, um
bom vinho francês; Olivié passou dos limites, tomou duas garrafas, recostou na
poltrona e cochilou. Às 22h, um apito intermitente anunciava a chegada do trem de
ferro a Diamantina. O gerente da mina de diamantes que os esperava levou-os ao
hotel para um merecido descanso.
A busca - Uma semana depois da chegada de Olivié a
Diamantina, desembarcou na estação da EFCB o italiano. Trazia em sua bagagem
todas as suas economias em dinheiro vivo e uma dezena de máquinas de escrever
Olivetti. Seria representante na cidade desta famosa marca. Era uma forma de
despistar a real finalidade da sua estada na região. Alugou um cômodo ao lado
da Igreja Matriz, montou sua pequena loja. Muito alegre e comunicativo, logo
angariou muitas amizades. Alugou uma casa bem perto da loja. Todas as noites ia visitar Olivié. Confabulavam
horas a fio, planejavam, arquitetavam como dar inicio à busca do tesouro sem
despertar a curiosidade dos habitantes da cidade. Para Olivié era mais fácil,
pois a mina de diamantes ficava próxima ao local estipulado na carta. Após
muitos estudos, acertaram a compra do terreno em que estaria enterrado o tal tesouro,
como constava na carta.
Durante longos tempos, munidos de pás, enxadas e
picaretas, os dois companheiros iam, nos fins de semana, à fazenda que
compraram, furavam buracos, faziam cálculos, mapas e nada de acharem o tesouro.
Passados mais de 30 anos, com a morte dos pais de Lina, os cunhados decidiram vender
a mina de diamantes. Além do mais, Lina sentia uma saudade enorme do Rio de
Janeiro. Gostava de Diamantina, mas a cidade era pequena, não havia teatro, o
conforto de um grande centro, e estava longe da sua família. Vendida a mina, Olivié
chamou seu amigo para um último encontro e lhe disse que estava de partida para
o Rio e que daquele dia em diante, se porventura encontrasse o tesouro, seria
somente dele, do italiano. Que se casara com uma moça da cidade e tivera dois
filhos. E o mais interessante: seu primogênito ficou bem próximo da praga da beduína,
com sua boca enorme, bem parecida com a da camela. O italiano tinha muitas
virtudes, era trabalhador, bom pai de família, amigo de todos, educadíssimo,
boa prosa, contava causos e mais causos. Era também chegado a rabos de saia e
isto lhe causou certos aborrecimentos, mas nada que afetasse o bom humor de um eterno
sonhador.
Vinte anos mais tarde, a contar da data do retorno
ao Rio de Janeiro do seu sócio Olivié, perfazendo aproximadamente 50 anos de
busca, o italiano Giovane, “o Belo”, como carinhosamente era conhecido na
cidade, faleceu de câncer. Alguns anos antes da sua longa viagem para outra
dimensão, mostrara em confidência a este contador de causos a carta amarelada e
já desgastada pelo tempo, provavelmente de tanto ser manipulada, aberta e
fechada. Este legado é mantido por seu filho num cofre forte. Sugeri-lhe que
tornasse essa carta pública, para que pesquisadores e historiadores refizessem
e recontassem a história que, entre outras finalidades, seria a remissão moral
do contratador Felisberto Caldeira Brant. É que na carta há uma clara confissão
da autoria do roubo ao cofre da intendência, praticado pelo tesoureiro, e não
pelo contratador dos diamantes. A sugestão não vingou. Mas creio que se alguma
autoridade requisitar essa carta oficialmente terá sucesso, visto que se trata
de um bem público pertencente à União, documento que é da Historia do Brasil ao
tempo do Império Português. Certamente a lei tem amparo jurídico para tal ato.
Que em nada atrapalharia o sonho do filho do italiano de encontrar um dia o fabuloso
tesouro que seu pai morreu sem achar.
O Meteco
Pseudônimo de Luciano Becheleni
Guimarães
Voz de Diamantina - Edição 722
- 13/06/2015
Lembrei-me de Malba Tahan
ResponderExcluirBom a história. Gostei! O Felisberto Caldeira Brant, coitado, foi cumprir pena de degredo por um crime que não cometeu. Eu tenho um livro escrito por ele, sobre Diamantina. Eu morava em Corinto, quando saiu no Jornal, o Estado de Minas, que uma casa ai em Diamantina, teve uma de suas paredes caida, após um forte chuva, e no meio da antiga parede feita de ''pau a pique foi encontrado um pode de barro com um tesouro dentro, entre diamantes e ouro).
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