O INOCENTE – PARTE I
Esta
é uma história verídica, ocorrida em duas épocas diferentes, separadas pelo
tempo aproximado de208 anos; uma ocorrida em 1960, e outra em 1752, no Arraial
do Tijuco, atual cidade de Diamantina. Os personagens são verdadeiros, apenas
os nomes foram mudados. Foi relatada a este contador de casos, de viva voz, com
toda a fidelidade e nos mínimos detalhes. Parte importante desta história
sempre foi do conhecimento da população, contada e recontada ao longo de dois
séculos em todas as rodas sociais, desde os tempos imperiais em que éramos
colônia de Portugal.
O baú - Seu Mamede, nome tanto quanto singular para um
pedreiro meia colher limpador de chaminé, tipo faz tudo, fora sugerido pelo seu
padrinho de batismo, o turco Mamede. Era filho de carpinteiro e tinha quatro
filhas e três filhos. Homem rude, simples, trabalhador e honesto. Aos domingos,
ia à missa das dez, acompanhado de toda a família. Os rapazes bem vestidos,
penteados com brilhantina e as moças com vestido de chita exalando leite de
colônia. Em seu ritual domingueiro, descia a ladeira rumo à matriz às 11h, num
pequeno passeio com a família na praça central da vila; logo depois, seguiam
rumo à pequena, mas bem arrumada casinha, no fim do vilarejo de Mariana. Já em
casa almoçavam a tradicional macarronada preparada pela prestimosa esposa e, em
seguida, uma sesta auspiciosa até o próximo compromisso às quatro da tarde, na
barbearia do Afrânio, para o costumeiro jogo de truco. O barbeiro, sujeito
ranzinza, reclamava de tudo e de todos, mas era bom no carteado, não perdia uma
rodada e abria a barbearia aos domingos à tardinha apenas para a jogatina.
Finda
a sesta, Mamede punha-se a postos na porta da sua modesta casa para desfrutar a
companhia do barbeiro e dos demais amigos, com sua camisa de algodão branco
toda engomada, calça de tergal de vinco impecável e botina preta exemplarmente
engraxada. Os amigos iam chegando e, quando apareciam uns quatro, desciam a
ladeira rumo à praça central da vila, ao lado da Matriz, onde ficava a barbearia.
Antes, porém, uma parada no botequim do Antônio Maria, para aquisição do
combustível mestre dos finais de tarde de domingo, a famosa água que passarinho
não bebe, a branquinha, assim também
carinhosamente chamada.
Ao
chegarem à barbearia, a mesinha já estava pronta ornada com pano verde e
banquinhos. Havia ainda um enorme tronco lavrado que servia para os presentes
assistirem às partidas, sentados confortavelmente. Aquele jogo era como guerra,
disputa ferrenha, e seria comentada durante toda a semana. Os perdedores, nos
dias vindouros, tinham que dar a volta por outra rua para se ver livres da
gozação, pois o Afrânio chegava ao cúmulo de interromper seu trabalho,
dirigir-se à porta da barbearia para achincalhar os perdedores, gozá-los até
que se irritassem.
Naquele
fim de tarde de domingo, Mamede jamais poderia imaginar como seu destino ia
mudar. Terminada a última mão, Afrânio pediu a Mamede para esperá-lo, pois
tinha queria tratar com ele o conserto de uma velha chaminé no sítio que havia
comprado. Não aguentava mais os reclamos da sua esposa, dizendo que a lareira
não funcionava e nem podia atiçar-lhe fogo com risco dela desabar. Combinaram
para olhar o serviço e o preço na segunda-feira. Trato feito, Mamede rumou para
casa. Já estava na hora de recolher-se e tomar seu mingau de fubá com topada de
queijo.
Na
segunda bem cedinho, Mamede passou na casa do amigo Afrânio e rumaram para o
sítio, que ficava a meia légua da rua. Lá chegando, olharam o serviço da
lareira e ainda combinaram pequenos reparos numas goteiras impertinentes.
Mamede encomendou para a faina um saco de cimento, areia e cal virgem e disse
que precisaria deste material à tardinha, pois iria primeiro limpar a chaminé e
retirar as goteiras. Na hora do almoço, o pedreiro passou na barbearia, chamou
Afrânio em particular e disse-lhe: olha, seria bom o senhor dar uma chegada lá
no sitio. Aconteceu um imprevisto. Parte da chaminé desabou quando eu a estava
limpando e, pelo que percebi, os tijolos que, na verdade, são adobes muito
velhos, esfarinharam na queda, pois que feitos de barro misturado com capim e
estrume de vaca. Afrânio pôs as mãos na cabeça e disse: diacho, lá vem mais
despesa! Eu nem queria mexer com essa lareira, mas de toda forma vamos lá ver o
estrago. Rumaram para o sitio e em pouco tempo já estavam analisando o
desabamento de parte da lareira. Mamede, pedreiro tarimbado, sugeriu a
derrubada total da lareira e a construção de uma nova, visto que aquele tipo de
tijolo não se fabricava mais. E misturar material antigo com novo poderia
estragar o serviço. Afrânio disse: vou ter que ir à vila e conversar com minha
mulher. Por mim, derrubaria esta lareira e não construiria outra, porque é
muito incômoda, toma muito espaço da sala e tenho certeza que será usada muito
raramente. Combinaram de irem para o almoço e mais tarde decidiriam o que
fazer.
Depois
do o almoço, o pedreiro passou na barbearia para saber se fazia uma lareira
nova ou se derrubava a existente. Lá chegando, Afrânio foi logo lhe dizendo:
minha esposa quase me bateu, quando sugeri derrubar a velha lareira. Ela não
quer saber como vamos fazer, quer a lareira restaurada e, se possível,
conservando sua originalidade. Ao que o pedreiro respondeu: impossível; já não
se fabrica aquele tipo de material. Poderemos usar tijolos novos, refratários.
Afrânio disse então: combinado, faça desta forma.
Chegando
ao sítio, Mamede e seu ajudante puseram-se a derrubar a velha lareira. A cada
marretada, um bloco de adobe caía esfarinhado no chão, levantando poeira. O
ajudante e o pedreiro iam limpando a área com um carrinho de mão. Mas ocorreu
um incidente: o ajudante acertou a própria canela com a marreta, pondo-se a
sangrar e contorcer-se de dor pelo chão. Mamede disse-lhe: vá para casa que eu
termino este serviço. Passe na farmácia, peça um remédio para dor e mande pôr
na minha conta.
Parece
que o destino estava conspirando para que Mamede ficasse sozinho desmanchando
aquela lareira. Na terceira marretada para destruir o que sobrara dela, caiu ao
chão um baú velho e empoeirado, escondido ali há séculos. Encabulado, ele pegou
o baú, limpou-o e tentou abri-lo para ver o que tinha dentro. Mas as duas
fechaduras estavam emperradas. Com um pequeno pé de cabra liberou a tampa do
baú. Num espanto, seus olhos não acreditavam nas dezenas de patacas de ouro
reluzente, como se saídas diretamente da fundição imperial. Cartas, em papel
amarelado, escritas a bico de pena com tinta nanquim, podiam ser vistas sob as
patacas. (Continua na próxima edição)
O Meteco
Voz de Diamantina - Edição 718
- 16/05/2015
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