sexta-feira, 24 de julho de 2015

O INOCENTE - PARTE II
...O baú - Passado o susto, o pedreiro caiu num verdadeiro dilema: ser ou não ser! Ser honesto ou não? Comunicar o achado ao seu velho amigo Afrânio ou não? Seria roubo? Segundo tradição antiga, achado não é roubado. E, pelo visto, aquele valiosíssimo baú estava naquele local há mais de dois séculos. Matutou calmamente, imaginou uma casa nova para sua família, quem sabe, um pedacinho de terra com algumas vaquinhas leiteiras, o futuro da prole garantido. Pegou o baú, enrolou-o em sua jaqueta surrada e partiu para casa. Já era fim de tarde. Assim que chegou, nada disse à esposa. Tratou de guardar o tesouro no sótão da sua casa.
Uma semana depois do achado, entregou a lareira pronta e o telhado sem as impertinentes goteiras a Afrânio. Livre do compromisso combinado e já em casa, pegou o baú, abriu-o e retirou algumas moedas de ouro. Foi até a joalheria da vila e pediu ao funcionário para chamar o patrão, que precisava ter um dedo de prosa com ele. Feitas as saudações e meio ressabiado, mostrou-lhe apenas algumas patacas e pediu ao joalheiro para averiguar se eram de ouro e quanto valiam. O joalheiro disse-lhe que ia fazer um teste com o material, conferir-lhe o peso para chegar ao preço justo. Feitas as avaliações, estipulou o preço de cada moeda. Numa conta mental rápida, o pedreiro assustou-se mais uma vez. O valor era muito mais elevado do que imaginara. Ao calcular mentalmente a quantidade de moedas, perdeu a fala e ficou muito pálido.
O pedreiro ficou por alguns instantes imaginando e elaborando um jeito para contar como achara aquelas moedas e as outras que estavam em casa. Como a vila em que residiam, em tempos passados havia produzido muito ouro, não foi difícil para Mamede dizer que estava cavando uma cisterna em sua casa e deparou-se com um pequeno baú, dentro do qual encontrara algumas dezenas de moedas idênticas àquelas que lhe mostrara. Acertado o preço, Mamede rumou para sua casa em busca do restante das moedas para efetuar a venda.
Negócio acertado, negócio fechado, o pedreiro recebeu um cheque no valor total da venda de todas as moedas de ouro. As cartas amareladas ficaram fora do negócio; não havia interesse nem valor por parte do joalheiro. Quis até mesmo presentear o joalheiro com as cartas, o que foi recusado.
Uma dúvida rondava o pedreiro: como descontar cheque de quantia tão vultosa, se nem tinha conta bancária? Um dilema! Atravessou a rua, parou na porta do banco, entrou, foi diretamente ao caixa apresentar o cheque.  A funcionária, achando estranho o saque de valor tão alto, pediu-lhe que aguardasse alguns instantes e chamou o gerente. Que veio, pediu ao pedreiro para acompanhá-lo até sua mesa e lhe disse: temos em primeiro lugar que averiguar a autenticidade deste cheque; por favor, aguarde alguns minutos. Dirigiu-se, então, à joalheria e perguntou ao proprietário se aquele cheque fora realmente dado a Mamede. Confirmada a autenticidade do documento, voltou à agência e disse ao pedreiro: não dispomos no momento desta quantia em dinheiro vivo. Seria aconselhável o senhor abrir uma conta conosco. Ao que o pedreiro retrucou: não saberei lidar com uma conta, mal escrevo meu nome, não seria capaz de preencher um cheque. O gerente argumentou que quando ele precisasse de algum dinheiro, sacaria no caixa pessoalmente, bastando assinar o nome, que o próprio banco cuidaria do preenchimento do cheque, no que Mamede concordou, depois de relutar por momentos.
O pedreiro havia resolvido uma parte importante do seu plano, que era vender o tesouro por um preço justo. O dinheiro estava seguro no banco e ninguém ficou sabendo do achado do baú com o tesouro.
Nas semanas seguintes, não tratou nem empreitou nenhum serviço. Achou um lote com boa localização, comprou-o e iniciou a construção de uma nova casa para sua família. Adquiriu também uma caminhonete usada, um sonho antigo. Alguns meses depois, faltando poucos arremates para a casa ficar pronta, Mamede prometeu aos seus ajudantes que, se terminassem a obra em duas semanas, ele pagaria, todos os dias, uma rodada de boa pinga com tira-gosto no bar no final da rua. Num sábado à tarde, os peões exigiram doses extras de tira-gosto e pinga, porque haviam se esforçado muito durante a semana. Mamede concordou, e lá pelas tantas, disse: preciso ir, minha esposa deve estar preocupada.  Pagou a conta e quando ia saindo do bar, entrou uma morena de pele lisa, olhar sensual, cabelos soltos, batom vermelho nos lábios carnudos. Os olhares se cruzaram... Aquilo foi como um terremoto para o coitado do Mamede. As coisas para ele estavam acontecendo muito rapidamente e de forma inusitada. Nunca uma mulher daquele porte havia sequer olhado para ele. Sentiu um aperto no coração. Imediatamente a libido aflorou e ele disse aos companheiros ajudantes: mais uma rodada! Para quem está no inferno padre nosso é lenha! Este ato foi o inicio da sua derrocada. Mal sabia o que o destino lhe reservara.
Alguns instantes depois, a donzela se achegou à mesa e Mamede a convidou para sentar-se, ofereceu-lhe uma dose de conhaque, mais outra e, lá pelas tantas, perguntou-lhe qual era sua profissão. Todos ali presentes sabiam, menos o pedreiro. Dada a sua ingenuidade e até mesmo a falta de costume, a moça respondeu-lhe prontamente: sou da lida, mulher da vida, cheguei ontem da Vila de Nossa Senhora dos Remédios, vim passar uns tempos em Mariana. Os olhos do pedreiro brilharam, sentiu a facilidade de ter a donzela em seus braços naquele mesmo dia. Rapidamente pagou a conta e rumou para o cabaré com a moça. Foi uma paixão à primeira vista. Chegou em casa de madrugada. E assim se sucederam as semanas, todos os dias. Após, o trabalho, Mamede ia à sua casa, tomava banho, passava brilhantina nos cabelos, vestia sua camisa branca de algodão engomada e rumava para a zona do baixo meretrício. Estava literalmente amancebado com a donzela, mas sem largar a família.
Passados alguns meses, Mamede estava preocupado, o dinheiro ia acabando, havia emprestado grandes somas aos amigos e, pelo visto, jamais receberia de volta. Em pouco tempo, vendeu a caminhonete. Acabara o dinheiro no banco, não tinha mais de onde tirar, as dívidas se acumulavam e ele bebia demasiadamente.
Certa noite, ao chegar ao cabaré, encontrou sua amada nos braços de outro. Achou um desaforo e quis agredi-la. O novo concorrente reagiu. Iniciaram uma briga feia. Mamede sacou sua peixeira e desferiu um golpe certeiro no rival amoroso. A polícia o prendeu em flagrante. Foi um alvoroço. O mundo desabara na cabeça de Mamede. Preso, sem dinheiro nem para pagar um advogado e ainda devendo no comércio local. (Continua na próxima edição)

O Meteco


Voz de Diamantina - Edição 719 - 23/05/2015

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