O INOCENTE
O
tesouro e a inocência do contratador Felisberto Caldeira Brant
Em meados do século XVIII, a
mineração no Arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina, estava a todo
vapor, sustentando Portugal economicamente, suprindo as despesas da corte
portuguesa com ouro e diamantes e até mesmo pagando a proteção aos espanhóis contra
a pirataria inglesa por longas décadas. As leis que regiam o sistema
exploratório no Tijuco eram bastante rígidas; havia um regime próprio, ligado
diretamente à Coroa Portuguesa. Era como um estado dentro do estado. Nem sequer
o governador da província tinha poderes. A coleta do “quinto” era feita pelos
intendentes nomeados pela Coroa Portuguesa e armazenados em cofre forte na sede
da intendência, para posterior envio a Portugal com forte esquema de segurança.
Essa cobrança e a respectiva coleta eram registradas em livro próprio com
recibos datados e assinados por ambas as partes: os contratadores de diamantes
e o intendente. De vez em quando surgia no Arraial do Tijuco um ouvidor com a
finalidade de fiscalizar os números, possíveis desencontros entre o arrecadado
e o enviado a Portugal, assim como despesas gerais de manutenção da cavalaria,
proventos etc.
Entre 1749 e 1752, o contratador
dos diamantes na Vila do Tijuco era Felisberto Caldeira Brant. Neto em 12º grau
de Henrique III de Inglaterra por parte de sua 10ª avó, Marie d’ Évreux, também
conhecida por Marie de Dreux, com sua esposa, Branca de Almeida Lara, foi
também avô de importantes personagens históricos, os primos Felisberto Gomes
Caldeira e Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira Horta, o Marquês de
Barbacena. Felisberto Caldeira Brant, mineiro audacioso, que foi riquíssimo.
Começou a acumular fortuna por volta de 1735 nas minas recém-descobertas de
Goiás. Em 1744, ao abraçar a causa popular e participar de motins contra o
quinto os Caldeira Brant tiveram de abandonar Goiás. Transferiram-se para
Paracatu, onde minas acabavam de ser descobertas, mudando-se em seguida para o
Arraial do Tijuco (antigo nome da cidade de Diamantina), já com a intenção de
arrematar o terceiro contrato de diamantes.
Felisberto foi acusado de
arrombar o cofre em que os diamantes da intendência eram mantidos, forjando,
dessa forma, um roubo a si próprio também. Acusação desde o início baseada em
argumento absurdo, ficando claro que o contratador era alvo de uma armação por
parte da Coroa, a que ele se tornara altamente inconveniente por sua
popularidade, riqueza e poder. O cofre da intendência possuía seis fechaduras;
duas chaves ficavam em poder do intendente do distrito, uma em poder do
contratador, e as outras três, em poder dos empregados da intendência, como
tesoureiros. Dessa forma, se tal cofre fosse aberto, a responsabilidade pelo
ocorrido era a mesma entre os cinco guardiões das chaves.
Às celebrações da Semana Santa de
1752 compareceu o ouvidor da Vila do Príncipe, dr. José Pinto de Morais
Bacelar, que se comportou na igreja de maneira inconveniente, o que causou
escândalo entre a população local. Ele, então, na tentativa de atrair a atenção
de uma jovem parenta dos Caldeira, jogou
no colo dela uma flor, que ela recusou para preservar sua dignidade. Na igreja,
houve um murmúrio de revolta. Aumentou a indignação de Felisberto que,
segredando palavras ao ouvido de José Pinto de Morais Bacelar, foi esperar por
ele na porta da igreja. Ao fim da festa, Felisberto Caldeira Brant exigiu do
ouvidor que se explicasse e, no meio de uma discussão, deu-lhe uma punhalada,
que não feriu Morais Bacelar por ter atingido um botão de ouro de sua casaca. O
povo, do lado da família Caldeira, estava disposto a resistir. A intervenção de
amigos e de padre Cambraia evitou que houvesse confronto entre os dois lados.
Para os inimigos de Felisberto
Caldeira Brant, entretanto, não foi difícil encontrar um pretexto. Devido ao
roubo de ouro e diamantes do cofre da intendência, o contratador não podia
imediatamente quitar sua dívida com a Coroa. Sacou uma letra de 700 mil
cruzados contra o caixa de sociedade em Lisboa em favor da Fazenda Real,
prometendo-lhe na primeira ocasião remeter os diamantes que já haviam sido
extraídos. Mas por falta de fundos
suficientes o caixa da Corte Real não pôde ou não quis aceitar a letra, então
recambiada ao Tijuco. Felisberto Caldeira Brant foi preso e sequestraram-lhe os
bens como se estivesse falido.
Um diamantinense filho de
emigrante italiano tem a posse do que seria em tese a alforria jurídica do
contratador Felisberto Caldeira Brant, corroborando sua inocência. Como ele
almeja um dia encontrar tão fabuloso tesouro, não disponibiliza a carta
testamento do tesoureiro da intendência na época do furto do cofre forte e um
dos guardiões de uma de suas chaves, inocentando Felisberto Caldeira Brant que
foi degredado, deposto, seus bens desapropriados pela Coroa e até hoje, tido
como ladrão. Existe uma ação indenizatória na Corte de Haya (International Court
Of Justice), no valor aproximado de 390 milhões de dólares movida pela família
Caldeira Brant contra o governo de Portugal, para ressarcir a família das
desapropriações feitas na época e para restabelecer sua dignidade.
Com o terremoto de novembro de
1755, muitos detentos da Prisão do Limoeiro fugiram. Felisberto Caldeira Brant,
no entanto, colocou-se diante do marquês de Pombal, inquirindo-o sobre aonde
devia ir. O ministro de dom José I surpreendeu-se e logo comunicou a situação a
João Pereira Ramos, ao bispo de Coimbra e ao general Godinho, que procuraram
comprovar que o antigo contratador era inocente e vítima de intrigas e
perfídias. Mesmo assim, o marquês de Pombal deu-lhe a liberdade, mas ordenou
que continuassem a liquidação de suas contas e o exame do sequestro de seus
bens. Gravemente enfermo, Felisberto Caldeira Brant, que estivera preso por
quase cinco anos, retirou-se para Caldas da Rainha, onde faleceu.
Nos anos 1960, um delegado da
cidade de Mariana, Minas Gerais, prendeu um sujeito por brigas na zona do baixo
meretrício; este personagem era limpador de chaminé e pedreiro meia colher.
Certo dia, ao desentupir uma velha chaminé num sítio nos arredores de Mariana,
deparou-se com um pequeno baú de madeira. Abriu-o e, para sua euforia e
surpresa, nele encontrou algumas patacas de ouro e cartas. Vendeu as moedas no
comércio local e guardou as cartas em sua casa. Com o dinheiro da venda das moedas, enfurnou-se na zona
boêmia de Mariana, arranjou uma briga feia, esfaqueou um rival amoroso e foi
preso.
Antigo garimpeiro em Diamantina,
que aqui veio dar com os costados justamente por conta do achado do limpador de
chaminé, estava em Mariana passando a lua de mel e encontrou-se fortuitamente
com um amigo de longa data, por coincidência o delegado que havia prendido o
limpador de chaminé. Contou o ocorrido ao amigo em lauto jantar, sabedor de que
ele era profundo admirador e colecionador de antiguidades. Combinaram para o
dia seguinte uma visita ao encarcerado limpador de chaminé, quando ele contou
sobre o achado com detalhes, dizendo que sobraram apenas algumas cartas
envelhecidas, amareladas, de difícil leitura. O amigo do delegado pediu para
ver as cartas, pagou o preço pedido pela relíquia sem ter ideia do que se
tratava. Terminada sua viagem de núpcias, já no conforto do lar, deu-se ao
trabalho de decifrar a carta escrita a pena com tinta nanquim. Assombrou-se com
seu conteúdo. Escrita por um tesoureiro da Intendência dos Diamantes na Vila do
Tijuco, dava conta ao inconfidente Cláudio Manoel da Costa em Mariana e
colocava à disposição do movimento da Inconfidência Mineira 15 arrobas de ouro
e dois litros de diamantes graúdos, por sugestão do padre Rolim.
Esse tesoureiro confessara ao
padre Rolim, no Arraial do Tijuco, que o roubo ao cofre da intendência não
havia sido praticado pelo contratador Felisberto Caldeira Brant, e sim por ele,
que estava arrependido do ato praticado por vê-lo ser execrado em praça
pública, preso na cadeia de Lisboa e seus bens confiscados. Contou ainda que,
depois de se aposentar da função de tesoureiro, foi garimpar no Rio Caeté
Mirim, e lá retirou uma quantia idêntica em diamante e ouro, tomando este fato
como um recado de Deus.
Padre Rolim, um dos
inconfidentes, sugeriu ao tesoureiro o sacrifício de um homem, no caso o
contratador Felisberto Caldeira Brant, em prol da causa da inconfidência e o
convenceu a escrever uma carta a Cláudio Manoel da Costa, o guardião dos fundos
para a causa da Inconfidência Mineira, colocando tais recursos, fruto do roubo,
à disposição do movimento. Ele escreveu a carta dizendo onde estavam enterrados
os diamantes e o ouro, doando tal fortuna à causa revolucionária. Cláudio
Manoel da Costa, pouco depois de receber a carta, foi preso, torturado e, no
calabouço, consta ter sido enforcado pelos próprios companheiros para não dizer
onde estavam escondidas as doações. O tesoureiro larápio, sabendo da descoberta
do movimento por parte da Coroa Portuguesa, teve um enfarto fulminante.
Esta carta existe, foi achada em
uma chaminé no sítio que supostamente era habitado pelo inconfidente Cláudio
Manoel da Costa, em Mariana, e se encontra neste momento em um cofre com uma
pessoa em Diamantina. Por longas décadas, tentou-se descobrir o local exato
onde estaria enterrado esse tesouro. O tesoureiro especificou detalhadamente
sinais, passos, a partir da soleira da porta de sua casa, perto do distrito de
Inhaí, na serra da Maminha, onde, depois de aposentado, construiu uma pousada e
um rancho de tropas para viajantes. Um desses sinais jamais foi encontrado;
eram três petens (marcas côncavas feitas a ferro na rocha para engate de
escoras na construção de bicames).
Sugeri ao atual proprietário
dessa carta torna-la pública, para que com estudos apropriados a memória de
Felisberto Caldeira Brant seja redimida e a história reescrita corretamente. A
sugestão foi infrutífera; o detentor da carta almeja um dia descobrir tal
tesouro, assim como seu progenitor, que passou mais de meio século à procura.
Mas suponho que se alguém arguir
juridicamente esse proprietário, a Justiça por certo lhe confiscará tal
documento, por se tratar de um bem de alta relevância para a história do país.
O Meteco
Voz de Diamantina - Edição 717 - 09/05/2015
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